domingo, 29 de novembro de 2015



A peixa e a sereia, por Lélia Almeida.

Minha mãe, que é gaúcha, foi morar no Rio de Janeiro, menina ainda, com a família, e voltou aos 18 anos para o sul. Foi com ela que aprendi a nadar e a respeitar o mar. Nos veraneios nas praias do Uruguai quando eu era pequena tínhamos um ritual secreto, depois que todos dormiam na casa, em noites de lua clara íamos nadar juntas. Ela recomendava que não fossemos muito longe porque eu não imaginava os bichos que podiam vir à beira-mar de noite, mas mesmo assim íamos. Eu fascinada com a brincadeira e com os tais perigos insondáveis e sempre sabendo que se ela estivesse por perto tudo ia ficar bem.
Ontem fiz o ritual sozinha, numa noite nublada e de muito vento, conduzida pelo triângulo de águas desenhado no meu mapa de nascimento. O mar estava calmo e a água morna. Antes de molhar os pés fiquei olhando encantada a força e a velocidade do vento sobre a areia que parecia mostrar, graficamente, como acontece nos filmes que indicam que na velocidade das imagens, uma radical mudança do tempo. A virada de um tempo interno e misterioso. Uma mudança inexorável, inadiável e soube assim que o pior já havia passado. Molhei os pés e ali mesmo, na solidão da noite, tirei a roupa e deixei os óculos e as sandálias juntos segurando o vestido.
A praia estava vazia e entrei no mar nua, lembrando aqueles tempos, firme e segura, sem a minha sereia por perto. Era uma noite esplendorosa e mergulhei sem medo nas águas agradecendo aquela pequena bênção nestes tempos de tantas dores e de tantas mortes. E pude ouvir as nossas risadas de outros tempos ressoando fortes com o barulho das ondas. Agradeci imensamente às águas pela capacidade de improviso nos tempos tristes, de maleabilidade e acolhimento, sua força perseverante e irredutível. Olhei para o céu imenso e abri os braços em gratidão profunda, sem conseguir parar de sorrir. E fiquei muito tempo dentro d’água numa espécie de batismo primordial, renascida. Um ponto de mutação.
Quando voltei à praia só encontrei as sandálias e o vestido, e os meus óculos não estavam mais. Não pude deixar de pensar com graça e ironia que às vezes é preciso aprender a ver as coisas de outra maneira ou, simplesmente, livrar-se dos óculos das ilusões perigosas, estas mesmas que nos espreitam como tubarões, arraias e outros na beira da vida.

No dia seguinte pela manhã parti da praia mágica cheia de gaivotas. Não olhei pra trás e estava pronta para nadar em outras águas. Fortalecida, dona e senhora de mim, as dores e as lágrimas vencidas diluídas agora no vasto mar, segura pela mão firme de uma mãe primeva que agora me habita finalmente.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015


Os meus, por Lélia Almeida.

Ri muito com alguns posts realmente engraçados e inteligentes da Hashtag ‪#‎meuamigosecreto, que denuncia o machismo e o abuso no cotidiano. Mas confesso que estou meio cansada desta história de que quando se fala em sexualidade feminina só se fala em abuso e maus tratos, simplificando de uma maneira radical que as mulheres são unicamente vítimas e os homens agressores e babacas. De minha parte e experiência conheço e convivo com homens maravilhosos e mulheres machistas, manipuladoras e cretinas. Já escrevi muito sobre isto por aqui, mas este reducionismo faz com que as mulheres permaneçam sempre cristalizadas num lugar de vítimas esquecendo toda a complexidade e grandeza que é um encontro sincero e feliz entre os homens e as mulheres. Tive dois bons companheiros com quem vivi alguns anos, com um deles tive um filho, tive namorados e amantes inesquecíveis e generosos que me ensinaram a crescer e desabrochar, fui chifrada umas quantas vezes e tive alguns grandes enganos, mas não desisto.
Tem coisas que só converso com homens, e só entendo quando eles me explicam.
Meu irmão outro dia me explicou, didaticamente, o que era lavagem de dinheiro e o meu outro irmão me deu uma aula sobre energia eólica, coisas que eu pensei que sabia, mas que não sabia, com aquele jeito prático que às vezes só eles sabem dizer. Meus irmãos são ciumentíssimos de mim até hoje, protetores e meus grandes amigos, pesem todas as nossas dificuldades e períodos longos de distância e saudade. Meus primos homens também me acolhem, me prestigiam e me cuidam e adoro estar com eles. Mostraram-me mundos inusitados e me apontaram horizontes fartos na troca dos livros e músicas na adolescência, e sou grata, gratíssima, na verdade, por nunca terem me tratado como uma debilóide porque eu era uma mulher. Meu avô me chamava de “pequena camotinha”, rindo da menina furiosa que eu era. Tenho amigos queridos que me dão colo sem que eu precise pedir e nunca falamos muito, eles estão ali e sei que olham por mim, uma vida inteira. E tenho um filho homem que me ensina coisas de mim mesma que jamais aprenderia de outra maneira. O nosso amor vinga forte ao longo da nossa vida juntos. Gosto dos homens, simples assim. Da energia deles, do fato de sermos diferentes em tudo e da companhia deles, do jeito que eles me olham e tomam da minha mão.

E gosto do meu pai, o pai mais amoroso do mundo, que na última vez que estive com ele, caminhando abraçados embaixo das árvores no sítio, me disse, finalizando uma conversa difícil: - “Olha pro sol, gordinha, que as sombras todas ficam pra trás.”

segunda-feira, 16 de novembro de 2015



Cuidado com a cueca que você usa, por Lélia Almeida.

A consulente me liga às 22hs chorando e me diz, “você tem que me atender agora, estou desesperada e preciso ver as cartas.” Sinto pela sua voz que a coisa é séria e digo que ela pode vir. Ela senta ofegante na frente das cartas enquanto sirvo um chá de erva-doce e ela mais branca que um lírio, tenta se acalmar.
“Tu não sabe o que eu fiz ontem”, ela começa.
JR, que é como ela chama o marido foi buscá-la no trabalho e deixou- em casa com um beijinho na bochecha, dizendo, “Tchau, minha linda”, às 18hs dizendo que ia pro jogo do Inter, que era às 22hs. É claro que ela só se deu conta sobre a disparidade dos horários depois que o carro já tinha dobrado a esquina. Mas aproveitou a noite para lavar e fazer uma escova nos cabelos e descansar um pouco. Às 23:53 chegou a mensagem pelo watts: “Oi. Não vou voltar. Amanhã conversamos. Boa-noite.”
Ela pegou o pau que ele guardava atrás da porta da casa para se proteger de possíveis assaltantes e saiu rua afora sabendo onde encontrá-lo. O carro dele estava na frente da casa da vadia. Não sabe de onde veio tamanha força física, diz, e começou estraçalhando o vidro detrás do carro, depois o do frente, o das portas e quando estava arremetendo contra o capô a porta da casa abriu e saiu o tal JR de cuecas e a vadia de body oncinha e sandálias de plataforma douradas. A vadia (que não fiquei sabendo o nome até agora) gritava que ia chamar a polícia enquanto JR tentava tirar o pauzão da mão dela. A polícia veio imediatamente, colocou os três na viatura e rumou para a delegacia na frente de uma vizinhança encantada com o furdunço.
A delegada era uma mulher imensa com uma cara de poucos amigos e que naquele momento devorava um xis com uma coca 2 litros. E de boca cheia perguntou: “- Que putaria é esta aqui no meu estabelecimento?” Eu disse, ela contou: “-É simples, doutora, eu quebrei o carro dele porque ele é meu marido e estava na casa desta vadia”. A delegada disse, “- Sai todo mundo daqui que hoje to com os corno virado, saiam já daqui!” – “Mas a senhora não vai prender esta louca?” perguntou a oncinha. A delegada viu então que a cueca do tal do JR era do Inter e perguntou se o elemento era colorado. A consulente disse que sim, e que ele era fanático. Ela ordenou ao policial: “- Tire a cueca do donjuan e mande os dois embora, sem carona viu, a pezito nomás, se fosse gremista eu continuava a conversa, e já pra fora com esta bagacerada que tô começando a ficar com enxaqueca”.
JR, agora transformado em elemento, saiu pelado com as mãos em concha sobre o membro murcho e a consulente foi pra casa aliviada arrastando o pau redentor.
Perguntei o que ela queria saber das cartas, ela disse que agora nada, e tirou da bolsa duas latinhas de cerveja bem geladas explicando que o que precisava mesmo era de uma amiga para comemorar.
Assim estão as pessoas.


domingo, 15 de novembro de 2015


As cidades são os nossos amores, por Lélia Almeida.

Tem muitos lugares que gostaria de viver, ou de voltar a viver. Barcelona, Mendoza, Brasília, Londres e outros mais. O que nos encanta nas cidades são as experiências vividas e as pessoas com quem convivemos nelas. Porto Alegre, neste momento, é a minha cidade de eleição. Onde reencontrei amigos do tempo da faculdade, ex-alunos, primos amados, e que nos devolvem uma memória preciosa que só nós conhecemos como guardiões sagrados da nossa simples existência. Devolvem-nos memórias preciosas e lembramos quem somos e assim estamos salvaguardados. As cidades ficam imantadas de amor por conta da nossa memória afetiva e das histórias que vivemos com quem amamos, convivemos e crescemos. As cidades e os nossos amores se misturam.
Há exatamente um ano fiz uma sessão de autógrafo no Centro Cultural CEEE - Erico Verissimo. Hoje fiz o mesmo caminho para a Rua da Praia, saindo do Mercado e chegando ao Centro Cultural. O “Café A Brasileira” estava fechado, fiquei olhando a fechada do prédio e senti uma paz indizível dentro de mim. Cheguei ao Centro Cultural e estava em Porto Alegre de novo, na Feira do Livro que eu tanto amo, indo dar uma palestra como faço há mais de vinte anos. Nada doía. Éramos eu e a cidade num domingo quente e ensolarado, e nada mais.
No dia 4 de novembro do ano passado, na sessão de autógrafos estavam ele e a minha amigona de toda a vida, a Ana Ana Luiza De Moraes Vieira, que estava hoje no mesmo lugar comigo ouvindo a minha palestra. No ano passado, depois da sessão de autógrafos, eu ia para um sarau literário encontrar com a Karla Melo e com o Samarone Lima. Despedi-me da Ana e desci com ele para tomarmos uma água antes do sarau. Na porta do prédio encontrei com o Taylor Diniz que me disse que estava indo ver o Miguel Sousa Tavares. Não fui ao sarau e não fui à palestra, fui tomar uma água com ele no “A Brasileira”.
As parcas estavam tecendo, quem sabe distraídas ou cansadas, tramando tantas malhas ao mesmo tempo. Mas fui eu quem escolheu. Fui tomar uma água com ele no “A Brasileira”. E nunca me perguntei o que teria sido da minha vida se tivesse ido ver a palestra do português ou se tivesse ido ao sarau.

Eu escolhi. Foi uma escolha minha e nada mais. A vida é assim. E não há outro jeito de vivê-la. Que as experiências tem prazo de validade e nenhum certificado de garantia.

Chame sempre a sua, mãe, por Lélia Almeida.

Fui estudar em Mendoza quando o Pedro, meu filho, tinha sete anos. Ele se alfabetizou lá. Com tantos afazeres entre os estudos de doutorado e cuidar dele e da casa sozinha, não percebi como ele aprendeu o idioma. Um dia o vi na calçada da rua sentado com dois amigos trocando figurinha do álbum de futebol daquela Copa que a França ganhou do Brasil. Eles batiam as figurinhas e diziam: “esta tengo, esta no tengo, tengo, no tengo”, numa velocidade absurda. Putz, eu pensei, o cara ta falando espanhol e eu nem sei quem ensinou pra ele.
Não foi fácil pra ele ficar longe do Brasil, que significava ficar longe da avó que ele tanto amava, do pai, dos tios, dos amigos. Mas o maior medo dele era se perder na cidade e não me achar. Um dia ele me perguntou: “E se eu me “perdo”, vou virar um menino de rua?” Eu disse que não, que ele não ia se perder, e que ele sempre podia pedir pra alguém me procurar e que ele sabia o meu telefone e o nosso endereço e que sempre ia dar certo.
Na nossa última semana em Mendoza, depois de dois anos, ele se perdeu dentro do supermercado. Ouvi o alto falante dizendo, “El señor Pedro Domingues busca por su mamá, está en la puerta de número 3”. Voei até o lugar onde ele estava e o meu pequeno veio correndo com a cara mais feliz do mundo, me abraçou e disse: “- Deu certo, mãe! Deu certo!”
Numa outra ocasião ele desapareceu dois dias em Brasília, bem mais velho já, perdido numa tormenta erótica com uma sirigaita. Não atendia o telefone e não dava notícias. Depois de chorar que nem uma bezerra desmamada e me arrancar os cabelos, respirei fundo, fiz OM por muitos minutos e pensei, se este guri é louco, eu sou mais louca do que ele, e há mais tempo! Não vou me mixar pra ele. Fui pro Facebook e postei um aviso na página dele dizendo que quem soubesse do paradeiro dele avisasse que tinha morrido uma pessoa da família e que ele entrasse em contato. Ele ligou em cinco minutos e eu disse que se ele não voltasse já pra casa que o morto ia ser ele.
Sempre chame a sua mãe. Sempre da certo quando a gente chama pela mãe, ela ta sempre por perto. Mesmo quando elas não estão mais por aqui, quando a gente chama por elas, elas comparecem. Às vezes disfarçadas de amigas e amigos que nos amam e nos conhecem como ninguém, às vezes como desconhecidos que nos dizem a frase certa na hora em que mais precisamos, e que nos salvam, e às vezes é aquela voz interior que fala dentro de nós e que é a voz dela guardada pela convivência de toda uma vida. O importante é a confiança que temos nesta voz e no olhar amoroso que só estes amigos têm de verdade por nós.
Hoje encontrei o meu vizinho, o Augusto Bier, no boteco da esquina comprando um picolé, este Bier que eu adoro e admiro. E ele me disse com aquela voz de acalanto dos amigos que nos embalam: -“Vai passar. Sempre passa!”

E voltei pra casa nutrida e certa que sim, que vai passar.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015



Inveja da Maria Bethânia, por Lélia Almeida.

Minha amiga-irmã, Milena Weber, me convidou para ir ao show da Maria Bethânia no Araújo Viana no domingo. A aparição da Bethânia é algo indescritível, sua voz, sua presença de palco, sua força. Eu queria ser a Maria Bethânia, provocar, como artista, este frisson nas pessoas. Ela, como outros atores e cantores, a gente quer levar pra casa, ficar amiga, ser aquela força. Nunca serei como ela. Escritores não aparecem e quando aparecem só provocam a mais imediata reversão de expectativas.
Quando publiquei na internet um texto chamado “Sexo Virtual”, que fez muito sucesso na época, fui convidada para tomar um café com um diplomata em Brasília. A cara de desapontamento do sujeito quando me viu entrar, uma senhora quase formal, atrapalhada entre um celular e um guarda-chuva, foi de dar dó, quase voltei da porta do restaurante. Comemos aipim frito e tomamos uma caipirinha e o encontro foi rápido quando ele viu que não ia render nada mais, além disso. Muitos leitores fantasiam que tudo o que escrevemos foi vivido e como adoro escrever piadas sobre sexo, já que o sexo pra mim é ridículo e divertido, sem nobreza nenhuma, sou assediada constantemente para contar sobre aventuras que jamais vivi ou por sugerir que sou alguém muito porra louca, coisa que também não sou.
Ninguém entende esta gente que escreve, nem nós mesmos entendemos, e talvez esta seja a graça da coisa toda. Também fui convidada para um chá com mulheres que queria saber se eu tinha saído com um japonês que foi personagem da minha crônica chamada “Turbilhão”. O japonês nunca soube da minha existência, minha vida é tão normal como a de qualquer feirante que acorda cedo e pega um ônibus pra ir trabalhar. O que eu tenho é uma imaginação delirante que me ajuda a espremer da vida comum e corrente seu sumo mais delicioso ou ácido, dependendo do dia.
Eu nunca gostei de conhecer os escritores e escritoras que amo, sei que o texto é sempre muito superior ao que somos. Mesmo assim provocamos este estranhamento. Cada vez que me hospedo num hotel e coloco ESCRITORA como profissão o espanto das pessoas é imenso, e sempre há um comentário surpreso e inevitável. Se escrevesse que era PUTA não teria o mesmo efeito, ser escritora é muito mais estranho que ser puta, parece.
Tenho dado muitas palestras para mulheres jovens nestes tempos em que o feminismo está na moda e não é menos diferente o espanto das meninas quando me vem chegar. Depois que conversamos muda um pouquinho, mas só um pouquinho. Mulheres que pensam e escrevem são pessoas incompreendidas, fora do lugar, deslocadas e isto não muda. Nem se eu usasse aquela saia de lamê dourado da Bethânia ia conseguir um efeito contrário. Escritores são pessoas sem glamour, vivem muito sós e só pensam bobagens, são obsessivos, fóbicos, instáveis, sensíveis na hora errada, distraídos e choram de ranho quando encontram aquele livro que procuravam há dez anos, como se tivessem encontrado um tesouro.
E levam anos, muitos anos para que o trabalho apareça e que algumas pessoas se emocionem com o que conseguimos escrever. O maior elogio da minha vida foi de uma mulher de comunidade, muito pobre, no interior do Espírito Santo, que depois de uma palestra, me presenteou com uma imagem da Virgem Maria e disse: - Que Deus sempre lhe abençoe, quando a senhora fala as palavras entram dentro da gente, a senhora tem elegância mental. Nunca entendi exatamente o que ela quis dizer, mas amei demais da conta.

Este foi o meu momento Maria Bethânia, não me queixo, ninguém jamais disse isto pra ela, garanto que não.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015


Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.


A consulente é psicóloga, uma psicóloga famosa da cidade. Conta-me que o marido a deixou pela babá das crianças. Ficou três meses fora de casa. Chora de ranho na minha frente abraçada num rolo de papel higiênico. As cartas são claras, não vejo a separação deles e fico curiosa com o andamento da história. Cartas, aliás, maravilhosas. As taças de amor transbordando e o ás de paus, aquele pauzão, bem no meio do jogo. Depois que ela se acalma consegue contar que eles acabaram do voltar. Que foi numa mãe-de-santo que mandou-a passar mel na passarinha, no sentido horário, durante 9 segundas-feiras. E que colocasse o nome do marido e da “vadia” (palavras dela) rasgados, em 27 pimentões vermelhos e enterrasse no jardim. No meio do procedimento, de cortar os vegetais e rasgar os nomes, ela foi fazer xixi e quando foi se limpar lembrou que não tinha lavado as mãos e que quase morreu de tanta ardência nas partes. Não sabe o que deu mais certo, se foi o mel ou a fúria dos pimentões. Mas que ele voltou, voltou. Ela pergunta ao Tarot se deve continuar com o ritual, fecho as cartas e sugiro que ela vá imediatamente a um ginecologista. Assim estão as pessoas.




A mulher mais triste do mundo, por Lélia Almeida.

Como uma Penélope invertida e errática esqueci de  amarrar-me ao mastro da nau e fechei os olhos para melhor ouvir o canto do meu amor. Cega, esqueci-me de vê-lo, de olhar nos seus olhos. E fiquei ali, dia após dia, ouvindo a música que me perdia de mim. Seus ruídos. Os passos silenciosos pela manhã ao sair do quarto para não me acordar. O chiado da água da chaleira para o mate. O barulho da ração derramada nos potes das cadelas e o barulho dele escovando os dentes. O jeito como ele entrava na cozinha ao meio dia e me abraçava sussurrando, minha linda mulher, minha princesa. O ranger do portão de ferro quando ele abria a garagem na tardinha e o jeito que ele punha a mão pela janela para abrir a porta por dentro. O serrilhar das folhas no pátio nos sábados pela manhã, o motor do cortador de grama, a água da mangueira para lavar o carro no domingo depois do almoço, os gritos de gol quando o Inter ganhava, o estalar dos dedos para chamar as cadelas pra dentro do pátio, o barulho do fogo queimando a papelada da semana e ele guardando o carro na garagem. O vento embalando os eucaliptos.  O mugido dos bois e o revoar das garças rosas. O pio das gaivotas, o mar lá longe e a lenha crepitando na lareira. Ele fechando as grandes e emperradas janelas. E o seu ressonar calmo quando adormecia abraçado no meu corpo. Ouvi tudo e esqueci-me de ver. De ver que ele tinha partido, que ele não estava mais ali. Não sei o que fazer com estes ruídos que ainda reverberam nos meus dias, agora que abri os olhos e não sei para onde ele foi. Esqueci-me ingenuamente da cera das abelhas nos ouvidos e do perigo inexorável da melodia encantatória, esta minha velha conhecida. Agora olho atentamente e não o vejo.

Mas a lição é simples, Eros é cego e agora sou a mulher mais triste do mundo longe daqueles ruídos.




Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.

Somos quatro mulheres e três homens trabalhando na frente dos monitores numa sala pequena. A rotina é simples. Os homens chegam e colocam os fones nos ouvidos e comentam o jogo do dia anterior, os comentários são simples, “porra de treinador, tinha que ser demitido”; “e aquele bosta que ganha milhões e me erra aquele gol”, “e aquele frango, assim não dá.”
Todos estão com os fones e não ouvem o que dizemos.
Uma diz:
“Hoje cuspi no café dele antes dele chegar na mesa.”
“Fez pouco, disse a outra.”
“Não sei o que ele fez, mas tenho certeza que foi pouco, colega.”
“O desempenho daquele cretino, depois de uma semana sem me comer foi nota 5, ficou de recuperação esta noite.”
“Penso tanto numa vingança e não me vem nada decente à cabeça, uma vingança que me alivie os cornos, entendeu.”
“Compra líquido para os freios e joga na lataria do carro que a pintura faz assim ó wijepcaslnasnlasksi.”
            Todas rimos. Ela acrescenta:
“Faz três vezes, ele conserta e você repete e fica super solidária com ele e se ofereça para ir junto com ele na polícia fazer um BO contra tamanho vandalismo, com cara de Cinderela.”
            É o momento da queixa matinal, umas tem olheiras pela noite mal dormida por conta da nenê gripada, a outra vai ao banheiro fazer o risquinho preto no olho, que se atrasou tanto que saiu com “cara de ontem”, como esclarece. Depois, quase sempre, espiamos o horóscopo do dia, cheias de esperança.
Na metade da manhã começamos a interagir. Os homens, já sem os fones, e num mau humor canino por conta do timão decaindo, não tem noção do que falamos, assim como nós nem imaginamos o nome do técnico ou do maldito goleiro.
Assim são os homens e assim são as mulheres, a vida é mais do que simples.

Mas eu gosto mesmo é das mulheres. Porque elas são doidas varridas, loucas de atar, não enfartam porque se queixam e tem o apoio condicional das outras mulheres, sempre. Eu gosto das mulheres más e cansadas, e das insatisfeitas, eu gosto das mulheres de verdade, que tomam um café quente e dividem o biscoito de chocolate que é sempre amaldiçoado e aceito vorazmente como uma hóstia divina contra a dureza da vida.


A consulente me explica que sente que perdeu o controle da sua vida. Diz que é como quando a gente toma um caldo no mar, uma onda gigante e veloz nos pega de jeito, nos arrasta e não para mais, a gente sai escalavrada, arranhada, os cabelos enosados, vertendo água e sem ar. Ela diz que está no meio do caldo e que não consegue sair. Que a velocidade da água não a deixa vir para a superfície. A carta da Roda da Fortuna e do Carro sinalizam que o caldo continua. Ela ri cansada e diz, também, que graça tem uma vida controlada, né. E mergulha no redemoinho outra vez. Lembrei da Clarissa Pínkola Estés quando ela escreve que quanto mais controlada uma vida, menos vida se tem para controlar.

(Lélia Almeida)

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Assim estão as pessoas, por Lélia Almeida.


A consulente me conta que estava namorando um rapaz de 30 anos, ela tem 55. Que viveu um verdadeiro tsunami erótico e que foi tudo de bom, mas que cansou. Que não tem mais idade pra sexo gym todas as noites e que adora dormir sozinha. O rapaz não entendeu nada, desapontadíssimo perguntou a ela se não estava contente com o desempenho dele. Ela me explicou que quando a gente tem que dar muita explicação é porque a pessoa não vai ter condições de entender. E disse a ele de forma bem didática: querido, preciso da minha cama e da minha solidão pra trepar quando eu quiser e pra poder peidar em paz, pode ser?
A consulente me conta como foi difícil a separação do filho, um rapaz adulto que foi morar sozinho. Às vezes a gente tem de fazer rupturas definitivas para poder se encontrar de outra maneira, ela me diz. E conta que agora eles passeiam de ônibus pela cidade, cada um coloca um fone no ouvido e escolhem músicas no celular, olham-se cúmplices e risonhos ouvindo "I follow rivers", o cordão umbilical leve, finalmente.


(Lélia Almeida)

Perdi um gato.
Perdi um dente.
Perdi uma camisola azul.
Perdi um amor
um pé de limão siciliano
e outro de limão taiti.
Perdi o chão.
E achei o meu caminho de volta pra casa.


(Lélia Almeida)



Doralice, meu amor, por Lélia Almeida.

Fui a Caxias do Sul participar da Feira do Livro de Caxias e me hospedei na casa da minha amiga de toda a vida, a Lolô Heloisa Mezzalira.
No dia que cheguei a Caxias minha amiga viajou para Porto Alegre e deixou as instruções para que eu cuidasse da Doralice, uma cocker de 14 anos, que não deixasse de alimentá-la e que a levasse para fazer xixi, lembrando que ela é velhinha, que precisa ser mimada, etc. etc.
Apaixonei-me imediatamente pela Doralice.
Estava tão preocupada com os cuidados com ela que sonhei que a Dora fazia xixi na minha cama. Às 6:45 da manhã estava a postos para cumprir a minha missão. Ela acordou às 7:15 e descemos os dois andares. Doralice desceu as escadas em desabalada carreira e me arrastou, ignorando o meu tornozelo avariado e tive dificuldades imensas em acompanha-la. Quando chegou à porta do edifício, antes que eu pudesse abri-la, Dora relaxou e fez um xixi imenso no corredor. Abri a porta e fizemos um passeio pela rua com direito a cocozão e mais xixi. Depois de deixa-la em casa desci com balde e vassoura para limpar o corredor, me sentindo uma incompetente na minha missão.
Voltei pro sofá perto da cama da Doralice que dormia como uma anja. Os movimentos da rua começavam na manhã fria da cidade. Fechei os olhos e ouvi a respiração da Dora. Os barulhos da rua ficaram lá longe. Fiquei concentrada na respiração dela e tudo ficou calmo novamente. Uma respiração tranquila e rouquinha que me devolveu a paz que eu precisava depois de me sentir um fracasso cuidando de uma cã idosa. Reconciliada com este e tantos outros fracassos fechei os olhos e comecei a respirar no ritmo da Dora. Inspira-expira e uma paz luminosa invadiu a sala e a minha vida. Ficamos velhas, eu e Dora. Não desço mais as escadas velozmente, tenho de levar mais tempo para fazer determinadas coisas, sob pena de fazer um xixi no lugar errado. Eu sou a Doralice. E fui tomada de uma alegria mansa, sabendo que o meu tempo é outro agora, sem pressa e sem ter que dar certo ou ser vitoriosa. Adormeci no ritmo da Doralice, aliviada, velha, feliz e grata pelos ensinamentos da minha nova amiga.


Travessia, por Lélia Almeida.


Ele me levou para conhecer a praia. Uma praia tranquila e cheia de gaivotas. Entrei imediatamente no mar, ignorando a água fria e a resistência dele com o mar. Depois de uns dias ensolarados e de mar calmo ele decidiu entrar comigo. Expliquei que depois da arrebentação as águas sempre são plácidas e tranquilas, que não tivesse medo, que confiasse em mim, eu que amo nadar em mar aberto e ficar muitas horas dentro d’água. Ele conseguiu me acompanhar, mas não conseguiu passar da arrebentação das ondas e ali ficou lutando e se defendendo sem conseguir ir além. Bastava um mergulho e passar para o outro lugar aquele. Ele ficou lutando contra as ondas que rebentavam sobre ele. E nunca mais saiu dali. Então nadei, nadei para muito longe, dias e noites, atravessei os oceanos, noites estreladas, dias chuvosos e outros ensolarados, guiada pelo vento, por golfinhos e cardumes de peixes fosforescentes. Atravessei o mundo e quando cheguei novamente à terra firme sacudi a cabeleira de algas numinosas e caminhei certa e leve sabendo que as peixas, as ondinas e as sereias nunca se perdem e jamais morrem na praia.