quarta-feira, 25 de abril de 2007

Ana Lucia Teichmann da Silva: presente.

Lélia Almeida

Ana querida,
Sou eu quem lhe escreve, a sua professora de Língua Espanhola IV, do Curso de Letras da UNISC.
Amanhã é segunda-feira de novo, o dia da nossa aula, e vou entregar os trabalhos, as notas de final de semestre.
Há apenas uma semana atrás, segunda-feira passada, você me entrega um trabalho sobre Carlos Gardel. A letra grande, clara, redonda, de professora. Você veste uma blusa vermelha, combinando com o batom. Porque é assim que você é, como a sua letra: clara, grande e redonda. Você é bonitona, faceira, risadeira. Mesmo nestes últimos tempos, você nos conta em aula, que não têm sido muito fáceis. Você tem recebido ameaças de morte do seu ex-noivo, inconformado com a separação. Somos poucos em sala de aula, uns quinze apenas, e nos encontramos também em outras disciplinas do curso. Daí o tom de confidência, de intimidade de algumas conversas. Na verdade, você está justificando as ausências em algumas segundas-feiras, as perseguições acontecem geralmente nos domingos e entre as peregrinações à polícia e o pavor e a depressão por estes episódios, segunda-feira é quase que um momento de ressaca, um dia difícil para começar a viver de novo.
Ouvimos estupefatos, incrédulos, há uma certa inocência, uma certa ingenuidade no seu jeito meigo de falar. Mas as nossas perguntas e sugestões são absolutamente pragmáticas e indagam sobre a sua proteção. Foram registradas queixas na polícia, a polícia sabe.
A polícia sabe. A sua família sabe. Os seus amigos sabem. As suas colegas de trabalho e escola sabem. E, agora, nós, os seus colegas e professores, sabemos. Sabemos todos que você está sendo ameaçada de morte pelo seu ex-noivo, que ele já tentou atropelá-la há uns dois domingos atrás. Sabemos todos que você corre um risco enorme. Um risco real, um risco de vida.
Amanhã é segunda-feira de novo, o dia da nossa aula e vou entregar as notas e encerrar o semestre.
Vejo o seu nome no jornal e sua foto na tv, o seu sangue vermelho, do tom do batom, da blusa alegre e sua vida, sua vivacidade toda que se esvai no pátio da escola, para sempre.
Um dos livros trabalhados neste semestre foi Crônica de uma morte anunciada, do Gabriel García Márquez e que conta a história do assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario. Uma morte fartamente anunciada e sobre a qual ninguém pôde fazer nada para evitar que acontecesse. Coincidências infelizes, avisos que não chegam a tempo, desencontros impedem que o inevitável aconteça, que Santiago Nasar, jurado de morte, morra. O narrador, na voz clara e profética de García Márquez, um também estupefato observador das tragédias latino-americanas diz, no final do livro: Principalmente nunca achou legítimo que a vida se servisse de tantos acasos proibidos a literatura para que se realizasse, sem percalços, uma morte tão anunciada. (p.147)
Uma morte anunciada. Todos sabíamos, você, Ana, sabia. E ninguém foi capaz de protege-la. É nisto que eu penso sem parar nas minhas noites e meus dias, que ninguém foi capaz de protege-la. Protege-la do impulso de alguém que entra no pátio da sua escola e descarrega um revólver no seu rosto, na sua cabeça, no seu corpo, e mancha com o seu sangue as nossas vidas, para sempre.
Hoje, domingo de noite (uma noite a mais sem dormir, de pensamentos obsessivos, confusos), assisto ao Senhor dos Anéis na tv. As forças do Bem e do Mal tão claras, limpidamente delimitadas, guerreiam pelo poder do anel. E penso que mais uma vez as forças do Mal venceram. As forças da loucura, da irracionalidade, da violência, da ignorância, do machismo, das trevas, venceram.
Uma história tão comum, tão antiga esta: o corpo de uma mulher jovem e bela jaz sobre o seu próprio sangue, assassinada por amor.
Você então entrega o trabalho sobre Gardel, faz a prova final e se despede. Parte para a sua semana de rotinas e trabalho. A semana da sua morte, a semana quando você vai morrer assassinada, como já fora anunciado.
Amanhã, segunda-feira, vou entregar as notas. Acabo de corrigir seu trabalho e sua prova, você foi aprovada. Vou encontrar com os seus colegas e sei que estamos sentindo todos a mesma coisa, tristeza, impotência, incompreensão...
Eu lhe escrevo num esforço de tentar compreender. Tentar compreender como foi que aconteceu, como foi que ninguém, nada pôde protege-la de morrer desta maneira, no auge dos seus vinte e um anos. E para tentar fazer com que esta história, que é a história da sua morte, possa caber no meu possível. Possa caber nos meus dias. Mas não cabe, Ana, simplesmente não cabe.

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