quarta-feira, 25 de abril de 2007


Os dois dias do ano em que eu choro:

Têm dois dias no ano em que eu invariavelmente choro. É quase como um choro com data marcada. Apesar dos choros outros do resto do ano, têm dois dias do ano em que eu sempre choro e da mesma dor. Dor de ver o meu menino crescer: quando eu compro o material escolar no início do ano e no dia do aniversário dele. Ele, o meu menino, vai fazer seis anos amanhã e eu me lembro daquela frase da Elizabeth Stone: "Tomar a decisão de ter um filho é grave. É decidir, para sempre, ter o seu coração andando por aí, fora do seu corpo".
Nós, as pobres mães, passamos uma vida inteira sendo chamadas de castradoras, relapsas, superprotetoras, onipotentes e adjetivos mais ou menos nesse padrão de qualidade e que terminam sempre por comprovar a nossa total ineficiência no que se refere a alcançar o ideal materno absurdo traçado por essa sociedade patriarcal, cheia de filhos homens exigentes e mimados que esperam das mães o impossível e um pouco mais. Mas eu tenho me perguntado algumas coisas, assim, de vez em quando, passando uma roupa, fazendo uma comida, coisas dessas que devem passar pela cabeça das mães do mundo inteiro, em qualquer lugar e qualquer tempo. Como não se sentir onipotente depois de passar anos, noites em claro, cada vez que começa o inverno, cuidando da otite do menino, que só se acalma depois de uma velada daquelas, de panos quentes, remédios e uma paciência sem fim, para que o pequeno possa desmaiar de cansaço no nosso colo? É mais ou menos como sentir-se uma deusa ilegítima, mas a dor passou e ele dorme, finalmente. Quando o menino nasceu, e, uns dias depois, quando dei o primeiro banho nele, fiquei aterrorizada. Meu Deus, pro resto da minha vida, a esta hora eu vou fazer o mesmo movimento, o mesmo gesto, dar banho no menino, todos os dias, pra sempre! Não é pra sempre, mas tem muita coisa que uma mãe não sabe quando os filhos nascem, ou esquecem de se lembrar: eles vão crescer um dia e vão tomar banho sozinhos, só que até isso acontecer, somos verdadeiras craques em movimentos mecânicos em determinadas horas do dia. Como não se sentir onipotente vendo que ele aprendeu a amarrar os sapatos? Já ensinou uma criança a amarrar os sapatos?, naquela idade que é a mesma em que elas não têm paciência para absolutamente nada, menos ainda para aprender a amarrar os sapatos? Tente, é outra vã vitória materna que a criatura vai carregar para sempre, sapatos bem amarrados nos pés, independentes das nossas rugas. E a primeira excursão sozinho, e a primeira vez na escola nova, a primeira bicicleta, e aqueles desenhos lindos onde eu, a mãe, apareço sempre como uma verdadeira perua, de vestido vermelho, colares, pulseiras e bolsas que jamais usaria na vida, com a legenda embaixo, A mãe! Sim, esta sou eu, esse monstro repressor, essa santa de paciência que leva a metade da vida tentando socializar um menino que vai passar a vida inteira sendo elogiadíssimo porque é igual ao pai. Vida complicada a das mães, para quem não sabe.
Assim mesmo eu choro. Quando compro o material escolar, primeiro pelo preço, depois porque sempre aparecem novos ítens naquela infindável lista onde eu termino por supor que o menino já está quase aprendendo a ler, a escrever e isso quase me mata de alegria, orgulho e emoção, tudo junto, misturado.
E quando ele faz aniversário. Começo uns dias antes com uma melancolia meio sem explicação e no dia da festa, quer dizer, um dia antes, é inevitável, o choro vem, e então eu lembro porque estou chorando e lembro que é assim, todos os anos, afinal. É na hora de enrolar os negrinhos, sabe, vou enrolando aquela quantidade enorme de negrinhos, que vão ser consumidos em cinco rápidos minutos por boquinhas ávidas e sujas de chocolate, e vou chorando. Os meus negrinhos, os que eu faço para o dia do aniversário do meu filho, têm, no fundo, um gosto meio salgado, só apreciável para quem tem um paladar muito apurado, que é o sal diluído das minhas lágrimas anuais, aquelas que eu contei antes. Porque eu vou enrolando os negrinhos e vou pensando: o menino vingou, mais um ano e o menino está vingando. E é como se me surgissem todos os dias da nossa pequena e simples vida em comum e eu me sentisse uma mulher enorme, vitoriosa, porque depois de tantos dias difíceis, de tantas noites sem dormir, das tantas vezes sem dinheiro, do enorme medo e da responsabilidade de ter de cuidar do bem-estar e da saúde do menino, ele está ali, se lambuzando com os restos da lata de leite condensado, do meu lado, ele vingou e eu me sinto uma deusa, uma deusa que chora como um rato, mas uma deusa. E eu me sinto pequena, igual a todas as mães do mundo que enrolam negrinhos no dia do aniversário dos seus filhos e que tem as mesmas preocupações. Eu me sinto pequena e com o coração quente, amolecido, porque este menino que vingou é o menino do meu coração, aquele com quem eu brigo todos os dias de manhã para acordar e ir para o colégio ( e ele tem um mau humor horrível como o meu!), aquele que me ensinou que as relações de amor na vida das pessoas são uma construção diária, vida inteira, que filho a gente não gosta só porque pariu, mas porque aprende a gostar no meio da guerra doméstica, todo dia um pouquinho, aprende a conhecer, a ver o jeito, a entender, se surpreender, porque filho vem pra ensinar o nosso tamanho, a resistência do nosso coração, o olhar para o outro, a ter paciência com o que cresce ali, do lado, perto, é filho que ensina a gente a ser mãe. Esta constelação de sentimentos os mais ambíguos, grandiosos e miseráveis, esta constelação que é por si só a experiência mais misteriosa de alteridade, de andar por aí, com o coração fora do corpo.
Amanhã ele está de aniversário, vai fazer seis anos! Eu tenho ainda um pedaço da noite para enrolar os negrinhos, passar no chocolate granulado e colocar nas formas coloridas de papel, a mão suja de manteiga, arregaço a manga da camisa, seco as lágrimas, aquelas que contei no início, mas é sempre inevitável, uma que outra sempre cai na massa de chocolate, com descuido.
O artista:

Lélia Almeida

O artista é aquele que empresta a sua alma ao mundo. Através do que o artista vê, sente e expressa, o mundo descobre lugares recônditos da alma, nunca antes descobertos. Há, para o artista, um sentimento imenso e arrebatador em todas as suas experiências, o exagero e a intensidade são os seus tom e medida. Sentir tudo, exaurir-se, esgotar-se e, poder assim, conhecer, saber do tamanho e das cores das emoções mais remotas, das menos conhecidas. O artista empresta sua alma ao mundo para que o mundo possa conhecer e experimentar todas as suas almas. Suas possibilidades de caminhos, rotas, descaminhos, atalhos. O prazer do artista em sentir e experimentar todo o possível e o inimaginável, é indizível. Ser tudo e todos, experimentar e conhecer a grandeza, complexidade e humanidade de tudo que podemos ser. Este é o prazer do artista, ser todos, conhecer, e experienciar, assim, o seu próprio infinito. Esta é a sua dor, a de emprestar a sua alma ao mundo, dá-la aos outros, dispersar-se em estrelas, num gesto único e próprio que é voz, traço, palavra, canto, dança e sonho.
Neto é filho com açúcar:

Lélia Almeida

A relação entre a minha mãe e o meu filho, confesso, beira a indecência. Este vínculo que surgiu há doze anos, com o nascimento dele, se fortaleceu e hoje, virou isso, uma relação indecente. Ele nasceu enquanto eu fazia o curso de Mestrado, uma mãe estressadíssima em meio a tese, mamadeiras, disciplinas e monografias quase sempre atrasadas e a torcida de muitas pessoas que diziam, você não vai conseguir conciliar as duas coisas. E eu pensava, ele é muito pequeno pra ser tão poderoso, vou conseguir sim. Mas, fundamentalmente consegui porque esta superavó esteve sempre ali, presente, incansável, com ele. Não era por mim e nem pelo Mestrado, era por ele e por ela, que já começavam, desde então, esta relação incomum.
Quando decidi que ele iria para a creche, alguns dias por semana e somente meio turno, para que nós duas, mãe e avó pudéssemos atender nossos trabalhos e vidas com mais mobilidade, ela cortou relações comigo para sempre e me disse que eu era um monstro. Voltou dois dias depois, morta de saudades do neto e magoadíssima comigo, para sempre. No aniversário de dois anos ela confeccionou uma roupa de Batmam para ele, indumentária esta que ele usou sistematicamente dos dois aos três anos, convencido da sua nova identidade, e quando ela ia levá-lo na creche, eles subiam no ônibus e ele dizia em tom autoritário, vamos batgirl, venha. E lá iam os dois, batmam neto e batgirl avó, em mais uma aventura.
Caxumba, catapora, dentes que nascem, dentes que caem, primeiras palavras, a testa aberta, pontos, ela firme, ele também, neste amor indecente, que se aprimora ano após a ano da existência dos dois.
Assim foram realizadas inúmeras viagens juntos, passeios, livros lidos, filmes vistos. Foi ela quem o iniciou em filmes de adultos ainda em tenra idade quando o levou pra ver Independence Day, fascinada ela por aquela nave imensa que atravessava os céus e alimentava a nossa imaginação paranóide. Ele deixou para trás pra sempre as pequenas sereias, belas e feras, e entrou definitivamente no mundo das naves e viagens e do cinema. Entre este ano e o ano passado mataram de uma sentada todos os Harry Potter e Senhor dos Anéis, filmes e livros, numa corrida de quem terminava primeiro para adiantar os episódios um ao outro. Ouvem músicas juntos, se criticam, compram cds e fazem o que as avós fazem com os netos há muitos séculos juntos, nada, se mimam e se adoram. Ela, que foi uma mãe superdisciplinada virada em uma avó que levanta dos seus afazeres a qualquer hora do dia e da noite pra fazer de pipocas doces a batatas fritas. Ele, aquele filho meio-disciplinado virado em sultão usufruindo dos mimos avoengos.
Eu, é claro, estou sumariamente excluída do romance e dos programas, aceita eventualmente pra não ficar chato. Porque afinal de contas a minha única função na vida foi essa e não outra: ser a filha dela e a mãe dele para que assim eles pudessem ser isso, a avó e neto amantíssimos. Isto feito, posso partir. Mas é assim mesmo, quando ela está por perto, ele consegue brigar melhor comigo, e embora ela sempre concorde com ele, me defende também, como corresponde a uma mãe. Vamos tecendo nossas vidas e nossos papéis, os que nos cabem na malha da ancestralidade. Eles, em idílio e festa, eu, encantada, de fora. Porque mãe é extrato de tomate concentrado: escova os dentes, faz os temas, arruma o quarto, guri. E vó é extrato de tomate diluído e sem pressão, dá sabor à pizza, ao cachorro quente, à farra grossa.
Porque com esta avó tudo é bom, horas de temas escolares feitos em conjunto pelo telefone, ambos competindo e se exibindo de quem sabe mais, sabe melhor, descobre mais coisas. E ela esclarece, é que eu trato o meu neto como gente, não como se fosse uma criança idiota. Ou, acontece que ele é especial, não adianta. E barbaridades como estas, por aí afora.
Sábado de noite depois do cinema, do MacDonalds, do cd novo, etc., programas eventuais e saboreadíssimos pelo neto de avó professora. Na frente da tv, os dois cansados da tarde movimentada. Ela cochila com os óculos caídos no nariz e o jornal no colo, ele recostado nela e o gesto que denuncia o menino, o menino que ele ainda é, o menino que ele foi e cresceu ao pé da árvore sólida, sobranceira: belisca suavemente o cotovelo dela, a pele que sobra, enrugada , e adormece como quando era um pequeno batman.
Eu entendo o que ela diz, "neto é filho com açúcar" e aceito o papel que me cabe nesta relação indecente: elos de uma corrente, a mão dela enrugada e envelhecida, a minha mão entre as deles, a dele, firme e pequena ainda. E o entendimento definitivo da eternidade, de que a gente não morre, de que a gente fica, se perpetua, que a imortalidade é isso: energia, calor, vínculo, amor.
As mães da guerra:

Lélia Almeida

Acordei com o coração apertado no meio da noite, com medo da guerra. Fomos muitas esta noite, as mães que não dormimos e repetimos gestos iguais como no movimento de uma dança onde nos parecemos e reconhecemos. Levantei e fui tomar água e olhar o meu menino que dormia e meu coração ficou mais apertado, o meu e o delas também. É só um detalhe o que me separa das mães iraquianas esta noite, das mães americanas também, um detalhe e nada mais: um golpe de sorte. Sorte porque casualmente a guerra não é aqui, da maneira como é lá neste momento. Mas estamos todas despertas, alertas, tentando embalar o mundo nesta noite infindável e escura.
A qualquer momento as bombas vão começar a cair, a qualquer momento a poderosa máquina da guerra, um trambolho tecnológico e imenso, movido pelo ódio e a insensatez e que acorda e adormece como um monstro de muitas vidas, estará em movimento outra vez. Por isso estamos alertas. Acendo velas no meu oratório e me persigno junto com todas elas, no meio desta noite escura. Somos muitas e oramos. Estamos vestidas de preto e oramos. Somos as mães do mundo, as mães gregas, as mães de Guernica, as da Praça de Mayo, as japonesas, as colombianas, as judias, as bósnias, as salvadorenhas, as afegãs, as iraquianas, as brasileiras, as americanas também. E os nossos filhos foram para a guerra. Os nossos meninos, promessas de amor e sonhos das nossas vidas: a semente, o fruto e a flor. Não há explicação que justifique perder a vida para uma morte insana, os nossos meninos ainda em flor oferecem suas vidas ao monstro devorador e a noite cai sobre nossas almas, numa condenação. Oramos, pranteamos o mundo e o desejo de morte de alguns. Nossas mãos fortes feitas para o amor estão aflitas, se contorcem, nossos olhos em pouco tempo estarão secos, de pedra, duros de incomprensão. Nosso pranto é um lamento, uma cantiga de ninar, um hino de amor à vida, de não à morte, à guerra, os meninos estão em perigo. Mas ninguém nos ouve. Somente nós, as mães do mundo, ouvimos um poderoso murmúrio subterrâneo que nos desperta e nos irmana nesta noite. Ouvimos o nosso pranto e nossa oração.
A história então se repete. É sempre a mesma. Uma mãe é despertada por um eficiente oficial do exército, num povoado deserto, semi-abandonado, na véspera da guerra, onde metade dos moradores locais já partiram para os campos de refugiados. O oficial é breve e tem pressa. Seu filho morreu ontem, numa manobra preparatória. A mulher, vestida de preto como nós, as mães do mundo e da guerra, pede para ver o menino, não pode acreditar, o oficial impaciente diz que é impossível, o corpo do menino explodiu pelos ares, mas traz enrolado num jornal os pertences do bravo soldado e parte apressado. A mãe, na porta da casa que tem de abandonar, abre o pacote e vê o par de sapatos do seu príncipe, do seu menino em flor, sapatos destruídos, rotos, furados, cheios de terra e sangue misturados. Cheira os sapatos, lambe, abraça junto ao corpo, ao colo, beija, lava os sapatos. Como se lavasse o corpo do seu menino, seus pés pequenos de ontem, os pés fortes de hoje, tira a terra misturada com o sangue seco e pensa em todos os gestos que lhe roubaram, limpar-lhe o rosto de olhos fechados, lavar-lhe o corpo destruído, curar-lhe as feridas. Acarinhá-lo, vestir-lhe roupas limpas, lembrar sua vida breve, honrar sua morte prematura. Beija os sapatos, enfia seu rosto de olhos secos no espaço côncavo entre os dois sapatos, um espaço vazio, e fica ali para sempre enquanto cai a escuridão da noite.
As bombas vão começar a cair, dizem, a qualquer momento. A mulher parte, vestida de preto, um ponto preto minúsculo numa multidão de mães perdidas mundo afora com as mãos vazias e os peitos secos. A nossa oração não pára, o pranto também não, levaram nossos meninos, assim como levaram os pais dos nossos meninos, e como levaram os avós dos nossos meninos um dia. O pranto e a reza atravessam o mundo e os nossos corações, os das mães do mundo e da guerra.
Que o saldo da guerra nunca foi a paz. O saldo da guerra é sempre a morte.
Ana Lucia Teichmann da Silva: presente.

Lélia Almeida

Ana querida,
Sou eu quem lhe escreve, a sua professora de Língua Espanhola IV, do Curso de Letras da UNISC.
Amanhã é segunda-feira de novo, o dia da nossa aula, e vou entregar os trabalhos, as notas de final de semestre.
Há apenas uma semana atrás, segunda-feira passada, você me entrega um trabalho sobre Carlos Gardel. A letra grande, clara, redonda, de professora. Você veste uma blusa vermelha, combinando com o batom. Porque é assim que você é, como a sua letra: clara, grande e redonda. Você é bonitona, faceira, risadeira. Mesmo nestes últimos tempos, você nos conta em aula, que não têm sido muito fáceis. Você tem recebido ameaças de morte do seu ex-noivo, inconformado com a separação. Somos poucos em sala de aula, uns quinze apenas, e nos encontramos também em outras disciplinas do curso. Daí o tom de confidência, de intimidade de algumas conversas. Na verdade, você está justificando as ausências em algumas segundas-feiras, as perseguições acontecem geralmente nos domingos e entre as peregrinações à polícia e o pavor e a depressão por estes episódios, segunda-feira é quase que um momento de ressaca, um dia difícil para começar a viver de novo.
Ouvimos estupefatos, incrédulos, há uma certa inocência, uma certa ingenuidade no seu jeito meigo de falar. Mas as nossas perguntas e sugestões são absolutamente pragmáticas e indagam sobre a sua proteção. Foram registradas queixas na polícia, a polícia sabe.
A polícia sabe. A sua família sabe. Os seus amigos sabem. As suas colegas de trabalho e escola sabem. E, agora, nós, os seus colegas e professores, sabemos. Sabemos todos que você está sendo ameaçada de morte pelo seu ex-noivo, que ele já tentou atropelá-la há uns dois domingos atrás. Sabemos todos que você corre um risco enorme. Um risco real, um risco de vida.
Amanhã é segunda-feira de novo, o dia da nossa aula e vou entregar as notas e encerrar o semestre.
Vejo o seu nome no jornal e sua foto na tv, o seu sangue vermelho, do tom do batom, da blusa alegre e sua vida, sua vivacidade toda que se esvai no pátio da escola, para sempre.
Um dos livros trabalhados neste semestre foi Crônica de uma morte anunciada, do Gabriel García Márquez e que conta a história do assassinato de Santiago Nasar pelos irmãos Vicario. Uma morte fartamente anunciada e sobre a qual ninguém pôde fazer nada para evitar que acontecesse. Coincidências infelizes, avisos que não chegam a tempo, desencontros impedem que o inevitável aconteça, que Santiago Nasar, jurado de morte, morra. O narrador, na voz clara e profética de García Márquez, um também estupefato observador das tragédias latino-americanas diz, no final do livro: Principalmente nunca achou legítimo que a vida se servisse de tantos acasos proibidos a literatura para que se realizasse, sem percalços, uma morte tão anunciada. (p.147)
Uma morte anunciada. Todos sabíamos, você, Ana, sabia. E ninguém foi capaz de protege-la. É nisto que eu penso sem parar nas minhas noites e meus dias, que ninguém foi capaz de protege-la. Protege-la do impulso de alguém que entra no pátio da sua escola e descarrega um revólver no seu rosto, na sua cabeça, no seu corpo, e mancha com o seu sangue as nossas vidas, para sempre.
Hoje, domingo de noite (uma noite a mais sem dormir, de pensamentos obsessivos, confusos), assisto ao Senhor dos Anéis na tv. As forças do Bem e do Mal tão claras, limpidamente delimitadas, guerreiam pelo poder do anel. E penso que mais uma vez as forças do Mal venceram. As forças da loucura, da irracionalidade, da violência, da ignorância, do machismo, das trevas, venceram.
Uma história tão comum, tão antiga esta: o corpo de uma mulher jovem e bela jaz sobre o seu próprio sangue, assassinada por amor.
Você então entrega o trabalho sobre Gardel, faz a prova final e se despede. Parte para a sua semana de rotinas e trabalho. A semana da sua morte, a semana quando você vai morrer assassinada, como já fora anunciado.
Amanhã, segunda-feira, vou entregar as notas. Acabo de corrigir seu trabalho e sua prova, você foi aprovada. Vou encontrar com os seus colegas e sei que estamos sentindo todos a mesma coisa, tristeza, impotência, incompreensão...
Eu lhe escrevo num esforço de tentar compreender. Tentar compreender como foi que aconteceu, como foi que ninguém, nada pôde protege-la de morrer desta maneira, no auge dos seus vinte e um anos. E para tentar fazer com que esta história, que é a história da sua morte, possa caber no meu possível. Possa caber nos meus dias. Mas não cabe, Ana, simplesmente não cabe.



Adorescência:

Quando meu filho começou a se alfabetizar, numa língua estrangeira e em outro país, a minha ansiedade extrapolou todos os limites. Os meus limites eram menores do que os dos outros pais que também, exageradamente, acompanhavam o processo aos sobressaltos. Um dia, numa reunião de pais para avaliarmos a quantas andavam os pequenos e suas iniciações no mundo das letras, a professora alfabetizadora, do alto de sua sabedoria decretou: apesar da ansiedade de vocês, estas crianças vão se alfabetizar! Fez-se um silêncio muito sintomático e que serviu como um balde de água fria sobre todos nós. As crianças se alfabetizaram, saíram vida afora, cidadãs leitoras e autoras, apesar dos nossos medos.
Projetamos em nossos filhos, da mesma maneira que nossos pais fizeram conosco, o medo dos nossos fracassos, as nossas frustrações, desilusões. E, no entanto, também como os nossos filhos, inúmeras vezes, nos saímos muito bem, obrigado.
Vivo outras ansiedades hoje, as ansiedades de ter um filho adolescente e de viver junto com ele a dura transição de deixar para trás as fraldas, as primeiras letras, os dentes de leites e entrar no mundo adulto que ora começa e não termina mais. E continuo sobressaltada. Sem saber como ser e o que fazer. Aquele menino que crescia ao pé da mãe descobriu que o mundo é um lugar deveras interessante e parte agora para além dos muros da infância.
Não gosto, no entanto, de algumas coisas que vejo acontecer ao meu redor. A paranóia dos pais, por exemplo. Aquela velha e conhecida ansiedade que nos leva a viver pela metade mais esta etapa, esta experiência, e que poderia ser vivida de forma muito mais gratificante e ser, assim, transformadora e inesquecível para todos nós.
Quando temos medo da adolescência dos nossos filhos é porque estamos reeditando todos os medos da nossa própria adolescência, do que foi vivido, do que foi deixado de viver, dos partos e da tarefa inadiável de amadurecer e começar a tomar a vida nas próprias mãos.
A minha adolescência foi difícil como a de qualquer adolescente: meus pais se separaram, saí de uma cidade do interior para uma cidade grande, eram tempos de uma importante transição política. Saí de casa, morei em repúblicas, mochilei e vivi tudo o que todos os adolescentes vivem: a alegria eletrizante das brigas por ser independente, a crença de que não há preços a pagar por nossas irresponsabilidades, os amigos, agora muito mais importantes que a família, e as dores destes conflitos todos. A escolha do que estudar, de sonhar ilimitadamente com tudo aquilo que quero ser e o que não quero ser quando crescer. O mundo é vasto e a vida, que é tão urgente, parece passar tão devagar. A vertigem dos primeiros amores, e dos trinta e cinco que se seguem, todos iguais, irrecusáveis e eternos. Um tempo de excessos e, ao mesmo tempo, de tantas limitações, se dá pra entender.
Não gosto do meu desajeitamento como mãe de adolescente, assim como não gostei do meu desajeitamento quando era adolescente.
Não gosto do estereótipo do aborrecente. Acho simplista e burro. As minhas maiores angústias e questionamentos existenciais se deram na minha adolescência, os melhores livros que li e filmes que vi, as minhas escolhas políticas, meus princípios éticos, estéticos, tudo o que sou como mulher adulta, a profissão que escolhi, começou lá, no meu momento mais genuíno de rebeldia e esperança, de desilusão e desesperança. Eu continuo sendo aquela jovem, continuo acreditando em muitas das coisas que descobri neste tempo vulcânico que vai dos doze, dos treze aos dezoito, vinte anos. Quando o corpo se expande como uma planta sólida, a alma voa e os desejos estalam. Sou ainda aquela jovem sonhadora que amava pai e mãe, e quanto mais longe melhor, mais amava.
Não gosto do jeito que eu e meus amigos olhamos para os nossos filhos adolescentes, parece que esquecemos de como éramos inteiros num território selvagem e num tempo precioso de experiências inadiáveis. Esquecemos de como éramos belos na nossa insegurança e nas nossas utopias.
Agora, como pais e mães, temos medo das drogas, da noite, do sexo, das más companhias, de tudo temos medo.
Olhamos para os nossos filhos e seus amigos – que são as mesmas e surpreendentes pessoas com quem convivemos há tantos anos – como drogados em potencial, prováveis promíscuos, possíveis irresponsáveis e jogamos pela janela tudo o que fomos e fizemos juntos até agora, com medo do escuro e do desconhecido.
Detesto esta demonização da adolescência. Este nosso medo que mina tudo e que nos faz esquecer que, apesar da ansiedade dos nossos pais, nos saímos razoavelmente bem, que alguns tropeçamos mais e pior do que outros, mas que sobrevivemos e tivemos filhos e que estamos ansiosos agora, movimentando um ciclo inexorável.
Pedros, Brunos, Elisas, Anandas, Yaundês, Marianas, Ricardos, os Lucas e os Gabriel, os Williams as Anas todas, Carolinas, Marílias, os Júlios e as Lauras, os Mateus, os Igor, os Fabrícios e as Brunas e os Felipes, os Rodrigos e Betos, enfim, todos vocês: desculpem a nossa ansiedade, é que o mundo tá brabo e nós temos medo. Desculpem o nosso esquecimento, das plantas desajeitadas e vigorosas que nós fomos um dia.
Olho pra vocês e me emociono, com os seus exageros e opiniões categóricas e definitivas, com um olho crítico único para as nossas caretices, com a sede e a fome e o medo que vocês têm. Vocês vão beber, fumar, transar, chorar, rir aos montes, experimentar a vida na veia, se decepcionar aos montes também, dançar, viajar e vão voltar pra casa e partir muitas vezes ensaiando o vôo definitivo para os seus próprios caminhos.
Adoro os jovens que vocês são, com seus ranços e mal-humor e risadas estridentes e seus aparelhos nos dentes e suas baterias desafinadas e seus irritantes celulares e msns. Adoro tudo. E torço, torço demais por vocês.
Aquela que um dia teve a idade que vocês têm hoje, dentro de mim, vela por todos vocês. E reza para que a travessia seja intensa como tem que ser. E às vezes leve também.