segunda-feira, 2 de junho de 2008

Leite Vermelho:

Lélia Almeida

Reuniu-se na Associação Brasileira de Imprensa no Rio de Janeiro, no dia nove de novembro, um grupo de cinqüenta mães representantes das comunidades mais violentas do Rio de Janeiro. O objetivo do encontro foi o de apresentarem demandas pontuais do que elas consideram suas realidades específicas, e para as quais elas entendem que o Estado não tem respostas nem providências.
Apresentaram-se dizendo seus nomes, o nome de suas comunidades e de seus filhos e filhas mortas, vítimas da violência nas zonas conflagradas, que se assemelham, em seus dramas, às das realidades das demais regiões metropolitanas do país.
Sou Maria José, e meu filho se chamava Carlos André, procuro por justiça há nove anos, são nove anos de espera, meu filho foi executado; Teia, mãe do William, nove anos de ausência e de saudades; Vilma, mãe de Talita; Sônia, mãe de policial morto, executado por traficantes. Ana, mãe de Thiago, procuro por justiça há 16 anos. A verdade é que a vida não vale nada onde moramos, meu filho morreu porque era negro e pobre, é um pedaço da gente que vai embora pra sempre.
Elas são os arquivos vivos, silenciados e esquecidos das histórias atrozes das chacinas de Queimados, do Maracanã, de Vigário Geral ou da Baixada. Elas são as Mães do Rio, as Mães de Acari, as Mães de Vigário Geral e são as protagonistas do capítulo de uma história do país que ainda não foi contada. E cujo roteiro, final e personagens são sempre os mesmos e que relatam como os nossos jovens são abatidos como bichos, todos os dias, transformando a vida dessas mães num verdadeiro calvário de dor e incompreensão. Isso aqui é uma terra de ninguém, de um lado estamos nós e nossos filhos, e do outro estão os maus policiais, a milícia ou o tráfico, que a gente não sabe quem mata mais que o outro.
As narrativas se parecem, e contam a história dos filhos mortos na ida para a escola, da necessidade de pagar o pedágio para os traficantes para que os meninos possam chegar a salvo na escola sem que sejam jogados das passarelas ou queimados no meio do caminho, por exemplo.
Estas mulheres não assistem Sex and the City, nem Mothern, e não conhecem os questionamentos do feminismo sobre a maternidade, suas demandas são simples e suas reflexões não são acadêmicas nem sofisticadas. Elas perderam seus filhos, seus filhos foram assassinados, elas pararam suas existências para procurar por Justiça. Algumas interromperam suas vidas para procurar os corpos de suas crianças, como as mães de Acari, que procuram pelos corpos dos seus onze filhos há quinze anos, e que ouvem a máxima de que não há como fazer Justiça nem punir ninguém, porque sem corpo não tem crime.
Estas mulheres, na sua grande maioria, perderam os maridos, porque eles constituíram novas famílias ou partiram, já que é insuportável, de muitas maneiras, conviver com estas mulheres que só tem um motivo para continuar vivendo, que é o de procurar por justiça, procurar uma explicação.
Estas mulheres encontram consolo ao se reunir com outras mulheres que sentem a mesma dor. Tentam transformar o luto em luta, e não se abatem, o motivo para que elas continuem vivendo é poderoso, elas gritam o nome dos seus filhos pelas ruas do país, a cada dia das mães, elas se reúnem e lembram o nome deles, porque quando elas deixarem de fazer isso a história de sadismo e violência que assola as regiões metropolitanas deste país vai estar legitimada e mais banalizada do que já está.
Elas não se fazem muitas perguntas sobre a dupla jornada de trabalho, nem sobre as novas tecnologias reprodutivas, nem sobre como os pais devem criar seus filhos, elas não sofisticaram a reflexão como muitas outras mulheres do mundo civilizado.
Como as emblemáticas Mães da Praça de Mayo, na Argentina, e como muitas outras mães pobres dos países periféricos, que assistem à morte e ao desaparecimento de seus filhos, diariamente, em circunstâncias brutais, e que, na maior parte das vezes, não vêem a Justiça acontecer, estas mães não tiveram a possibilidade de sofisticar a reflexão.
Joana Angélica, mãe de Carlos que foi executado em Queimados disse, estes filhos todos, desaparecidos, executados, e por cuja morte a Justiça não faz nada, são todos filhos de todas as mães, e nós somos mães de todos eles. Elas se chamam de mães comunitárias. E este é um triste e importante legado que as mulheres latino-americanas, junto com as outras mulheres pobres e vítimas de violência do mundo inteiro, trazem para a pauta das discussões feministas, o de colocar a discussão sobre a maternidade num outro patamar, onde ela é coletiva, onde ela é social.
As demandas dessas mães estão sendo levantadas pelo Ministério da Justiça para finalizar o Projeto Mães da Paz, do Programa Nacional de Segurança com Cidadania, o Pronasci. Com suas histórias dramáticas, elas fazem parte do público-alvo do projeto, juntamente com outros grupos de mães de apenados, mães de jovens em situação de risco e vulnerabilidade social e outras mulheres que se relacionam com os jovens que são o público-alvo do programa.

Nenhum comentário: