segunda-feira, 26 de outubro de 2009

D’O Livro dos Sonhos:

Lélia Almeida.

I
Tive um sonho naquela noite. Dormimos lado a lado. Cada um enrolado num edredon o que não deixava que os corpos se tocassem, tomei da sua mão e toquei seus pés para aquecer os meus, mas ele já não estava mais ali, já tinha partido para uma espécie de profundeza, sua respiração denunciava que ele já não estava ali. Meu corpo ansiava pelo calor do corpo dele, adormeci profundamente também e sonhei. Sonhei que estávamos nus e tentávamos nos amar, mas era muito difícil, ele tinha uma expressão facial de muita tristeza e dor, os corpos se desencontravam, o pau dele, que na ponta tinha uma espécie de cone oriental todo adornado e desenhado, me procurava e tentava entrar em muitas partes do meu corpo, com dificuldades, até que as partes se encaixaram e tudo fluiu com muita desenvoltura e prazer. E havia um animal aquático muito grande na beira de uma praia, que podia ser uma baleia, o animal gozava e de dentro dele saía um líquido espesso, meio gelatinoso que formava uma espécie de membrana viscosa e espessa, branca também, sobre a superfície da areia brilhante da beira do mar, uma membrana que podia ser a vela de um barco, uma tela de linho branco, frágil, transparente e muito resistente, e nela dormíamos da mesma maneira que estávamos na cama, juntos, mas separados, lado a lado, e o mar começava a levar a membrana-barco-vela-tela sobre as suas ondas, e nós sobre ela, adormecidos e entregues.

II
No sonho estávamos sentados numa mesa de bar. Muito próximos. E eu dizia que estava vivendo um momento muito rico, que muitas coisas incríveis estavam acontecendo como se houvesse uma conexão entre os acontecimentos. Ele pegava as minhas duas mãos, muito carinhoso, lembrei da cena do encantamento dos primeiros gestos. E fiquei encantada de estarmos nos tocando, como se isso fosse impossível de acontecer, eu beijava com muita timidez a mão dele e então nos beijávamos na boca e eu dizia. O Mago! E ele fazia uma espécie de bênção sobre as nossas mãos, abençoando, selando o nosso encontro, a nossa aliança. Depois ele me contava dos pais, das férias, que ele talvez visse os pais logo, já que estava perto do aniversário dele, em setembro, e eu pensava que ele tinha uma vida normal. Depois ele saía do bar e eu não sabia se ele voltaria porque tinha deixado todas as coisas dele no bar. E quando ele voltava estava fumando, o que era muito atípico. E eu olhava para o rosto dele que tinha aquela sombra de quem tem uma barba muito cerrada, e estávamos em pé indo para um jardim e eu olhava para o rosto dele, transformado agora, a boca estava pintada de alactaka, um corante, do kama sutra, com contornos pretos e ele era um djin, um gênio, um árabe.

III
Sonhei contigo. Tinhas vindo me visitar e eu estava muito feliz, parecíamos duas meninas brincando, muito íntimas, e estávamos as duas felizes. Eu abria as gavetas do meu quarto e te mostrava os meus cadernos de escrever, de capas de cetim, forrados com tecidos coloridos e sofisticados, os cadernos onde vou anotando o que depois escrevo. Mostrava um a um e adorávamos o ritual. Noutras gavetas havia jóias, anéis com pedras grandes, exageradas, outras mais delicadas, lenços, perfumes. E tu me dizias como era bom poder ver as minhas coisas femininas. Então pedias para que eu posasse para ti. Já tinhas pedido para a tua colega que era muito loira, e ela não tinha querido. Eu fiquei muito envergonhada e muito envaidecida, relutei em aceitar porque havia familiares meus por perto, mas eu queria sim. Então eu disse que, mesmo não sendo bela e nem proporcional, já tinha posado para um escultor uma vez. E me explicaste: não vou te desenhar, vou desenhar as tuas partes. Vais sentar nua numa superfície de vidro e eu vou estar embaixo vendo o desenho que forma as tuas partes repousadas no vidro. Isto é a lagarta. Prensada no meio das páginas.

IV
Cordélia, me ocorreu, a caçadora. Uma amiga do tempo da faculdade, a quem eu não via a muito tempo me apresentou a menina e disse, seu nome é Cordélia, como a da floresta. Um sonho iniciático, depois eu estava no meio de mulheres árabes, todas muito ricas trajadas com peças e brocados de ouro e muitas jóias e eu adorava o toque daqueles tecidos e as cores, adorava ser rica, e um homem alemão muito belo, com um carro potente e grande, me cortejava, ele tinha as pernas muito feridas. Depois todos tinham crescido, os filhos tinham se multiplicado, e eu e as mulheres tínhamos envelhecido. E éramos mulheres mais velhas com espírito de meninas. Eu ia de carro com a minha mãe ou com alguém como ela para um lugar no interior e passávamos por uma construção de pedras amarelas muito antigas no meio da floresta com esculturas de bronze e basalto, pombos, alguém disse, o colar dos pombos, o calor dos pombos, das pombas, eu disse, eu adorava vir a este lugar quando eu era pequena. E eu era conduzida a um lugar onde estavam outras mulheres que eram mães, como mães que iam me iniciar, como a mulher árabe aquela, a ricamente vestida. Atravesso uma passarela submersa em águas verdes e aparentemente pouco limpas. Há homens de muitas tribos ouvindo músicas estridentes, são homens rudes, fortes, viris. Há um homem deitado numa banheira, com calção de banho, ele geme, ele se confunde com o alemão doente, mas ele geme de dor no peito, no braço esquerdo, no coração, é um gemido de prazer, sexual quase, embora ele pareça velho e doente. Quando passamos pelo prédio de pedras amarelas eu lembrei do antigo hospital de tuberculosos, um edifício belo e imenso, de terracota, perdido no meio da paisagem da Catalunha, com os ferros dos portões que pareciam rendas. Tinha uma aura ao redor do prédio, quase uma bruma e depois eu ouvia vozes, choros muito fracos de meninos abandonados de peitos presos e corpos febris em pijamas listrados, desbotados, de cores neutras. E há um o caminho de folhas secas, avançamos num carro pequeno e não entendo porque visto roupas que ora me fazem sentir ridícula, ora muito confortável. E os véus transparentes, uma mulher diz, você precisa da licença da sacerdotisa para escrever. Avançamos, o hospital parece estar suspenso na planície, lá longe, mas perto o suficiente para que eu ouça os gemidos, os suspiros. E há, no fim de um caminho de terra vermelha, que não está pavimentado, um portal. Um umbral, um semicírculo de flores, jasmim, lágrimas-de-Cristo, brincos-de-princesa, sapatinho-de-judia, tudo misturado, lírios em algum lugar. Um cavalo branco passa, faz frio neste lugar e folhas secas em abundância, douradas, revoam, una hojarasca. Há uma inscrição muito antiga no frontispício do portal, ao lado do antiqüíssimo relógio de sol. Diz: as Belas Artes. E eu sou uma sacerdotisa. Mas no sonho não há só ruínas. Tudo reluz agora. O corpo, as roupas, a textura da seda. Sento no banco de pedra na frente do portal, dispo as roupas desconfortáveis e visto o véu branco e transparente. Meu corpo é velho e forte, solto os cabelos, acomodo as pernas na pedra fria, baixo a cabeça, o queixo quase encosta no peito, olho meus seios caídos, há muito deixei de ser uma menina, sou uma mulher muito antiga e carrego nas minhas carnes brancas os mistérios do tempo. Respiro fundo. Opalinas. Volto ao leite, a um leite impossível, improvável como o portal das Belas Artes e suas flores. E descanso finalmente numa espécie de paz há muito desejada. Fecho os olhos e oro. Oro em paz. O silêncio é o meu elemento agora, sob o véu. O silêncio infinito. O silêncio sem fim. O silêncio onde são gestadas as palavras.


In: O Livro dos Sonhos, 2008. (Fragmentos inéditos).

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