sábado, 24 de outubro de 2009

Um aparte necessário:

Lélia Almeida.

Excelência, vou lhe contar um segredo. Nunca me convenceu a história daquela Sherezade. Permita-me tamanha traição com esta personagem arquetípica das nossas belas letras, você verá como ela se justifica. Sherezade é uma farsa. E só um homem poderia ter imaginado tal personagem, para tentar instruir leitoras desavisadas. As Penélopes e as Sherezades nunca me convenceram. Funcionaram como as personagens da literatura dirigida às donzelas no século XIX, cheia de heroínas que se perdiam de amores por ineficazes burgueses e que depois eram castigadas, num intento de convencer as leitoras de que a farra não compensa. Toda sorte de adúlteras e prostitutas, transgressoras mortas e punidas, este foi o motivo da açucarada literatura cor-de-rosa para as moçoilas. Em mim, surtiram sempre um efeito contrário. Lúcia, o anjo decaído, sempre me atraiu nos seus piores momentos de bacante, de devassa perdida e diabólica. E também não tive paciência com os suicídios de Emma ou da Karenina, mas sempre desfrutei do antes, da parte em que aquelas libertinas se esfalfavam e divertiam longe dos maridos. E a Sherezade, diga-me, Ministro, o senhor que estudou filosofia, história, e leu muito da literatura clássica, quem iria se convencer com o poder das histórias daquela falastrona? Ela não convenceria nem o Sultão Xariar, nem o caçula Xazaman e homem algum desta ou de outra civilização. E o sultão Xariar, quem poderia crer que um sádico, que gozava resfolegando no sangue daquelas virgens decapitadas, iria se redimir com aquelas histórias edificantes da filha do Vizir? As premissas não convencem. Porque nada neste mundo irrita e cansa mais um homem do que a tagarelice feminina. Os homens só fingem infinita paciência com a falação das mulheres porque pretendem dobrá-las. Sherezade é um embuste, Excelência e, permita-me que lhe diga, o que fez com que este texto não sucumbisse ao esquecimento dos cânones é seu vigor evocativo. Evocativo de um original que talvez tenha se perdido na noite dos tempos, de uma matriz que nunca mais recuperaremos. E que fala de cavernas úmidas, tesouros perdidos, gênios bem servidos, pescadores apolíneos, de sultanas e escravas obscenas e, através do qual adivinhamos as farras da insaciável Sherezade. Ela nunca perderia tantas noites com sua débil lábia feminil, o que dobrou o Sultão foi o poder da barbiana, a eficiência da bífida, a avidez do berbigão, suas incontestes habilidades em farpear com o badalo do sarraceno. Por isso, nem adianta, meu caro Ministro, suplicar com estes olhos pidões de príncipe mouro. Porque eu não contarei nenhuma história, nada de tagarelices e nada de redenção, portanto. As nossas noites e dias de trabalho serão intercaladas, com aquilo que é o único que interessa aos homens e mulheres através dos tempos, que é o tranco, Excelência. O velho e bom tranco. Porque o resto, como alguém já disse, é literatura.
Vamos ao manual de instruções então.

In: A escrivã da corte, 2007. (Fragmento, inédito)

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