domingo, 6 de junho de 2010

Trópico - 2 junho 2010
O escritor Wilson Bueno foi assassinado no último domingo, dia 30/5, em Curitiba. Autor de uma das obras mais sofisticadas e inventivas da literatura brasileira contemporânea, havia terminado há poucas semanas seu próximo romance, "As Armas do Coração". Durante mais de cinco anos, ele foi um assíduo colaborador de "Trópico"; leia a seguir um de seus artigos, uma carta à escritora Hilda Hilst:
Hilda Hilst caminha aos uivos
Por Wilson Bueno
Hilda, minha cara Hilda, agora que você não morre mais, entabulo contigo esta conversa no escuro. É uma carta também arrepiada de medo, esta em que me desvisto em ti todas as coisas trêmulas e fatigadas.
Três anos não são três meses nem três dias de teu silêncio sucinto, este em que a morte horrível nele continua a pôr ovos, você que sempre existiu, para mim, assim de um modo triunfante - do garrancho das cartas suntuosas, poucas e raras, ao obsessivo tilintar do telefone sem fio, aqui em Vila Pequena, pinheirais de Curitiba, arredores. Na Casa do Sol, em Campinas, sei que me recebias, pelo telefone negro e velho; pesado de tantas tramas das vozes pelas fibras...
Sem horário ou método - tanto o telefone podia tocar às dez da noite quanto às oito horas da manhã, no Brasil. Sim, às vezes justo nessa hora em que eu -e você- empreendíamos a sempre difícil travessia do equilibrista na direção dos escombros de um novo dia. Umas vezes, terra devastada; outras, a atravessarmos a surpreendente alegria dos dias-colibris, cheios de minutos e de relógios. Você, nem que aquelas damas que não se fazem mais, toda manhã morria.
Houve a vez em que, a falar dos veros exercícios espirituais que os santos primitivos se impunham, derivei a conversa ao budismo, então uma de minhas obsessões. Lembrei Bashô e Issa. Mais Issa que Bashô. E você, estupefata, depois do longo silêncio em que lhe cessaram as palavras-estrelas, pontuadas de palavrões, o que dava à sua fala, assim como que umas fúrias de cão, se impôs, curta, restritiva:
- Que horror essa coisa de haicai... O sapo, puft!, na lagoa... Não gosto, não gosto disso.
E a vida impaciente das coisas, senhora com quem refalo, agora em que não morres mais, falo e refalo, projetados, os dois, ao abismo de mil novecentos e noventa e três. As tuas mil e uma mortes, Hilda; você que, como Clarice, só sabia ser íntima, e nos morria nos braços a cada susto, a cada noite bêbada de sono.
Sim, agora eu sei, senhora bruxa, a tua história tecida no vento de cada dia; eu sei, de ti, os derruimentos da carne e o colapso final dos ossos; da pele da cara, encarquilhada, e o que, não sendo ruga, vincos, são olhos, pequeninos e anciãos, ainda que dotados de uma extravagância assim um pouco diabólica. Um demônio que chorasse, Hilda; você era um demônio bom e, se chorava via Embratel dentro da noite grande de Curitiba-Campinas-Curitiba, um feixe de luz zunia pelas fibras óticas, pelos fios distendidos das conexões sem Deus. Oito horas da noite no Brasil e já eras tudo o que no álcool engrola e dizima, dissolve e carcome.
Em uma das muitas agonias de Caio Fernando Abreu, você soluçava, a lágrima e o sentimento do mundo, em nova aposta, Hilda, em nova aposta contra a morte, desde sempre perdida, Hilda, Hilda Hilst, meu amor. E me falava, me falava umas coisas estranhas (que nunca pude confirmar) de que Caio ouvia, com a pressão arterial zerada, vizinho do fim, o lúgubre soar de tambores tangidos por índias velhas e chorosas, às margens ferventes do Letes.
Hilda, não consigo disfarçar -acho que estou, que estou sim, com muita saudade de você.
Três anos, pelo fevereiro de 2007, em que busco nas ondas do rádio, ali onde você costumava escutar os mortos com antenas improvisadas, de lata, na noite invadida de pirilampo, latifúndio adentro dos Almeida Prado, seus ancestrais, três anos já que lhe reivento a voz grave, esporrenta, a brandir por campos e descampados, senhora obscena do desejo: “Ama-me, Apolonio, ama-me!”. Apolonio de Almeida Prado Hilst, o poeta louco, seu pai, que se correspondia com Mário de Andrade, e que a desejava sempre, com ganas de amante sequioso, toda a vez em que a sua graça de menina buscava um encontro com ele, no pátio dos uivantes hospícios.
Os amantes, tantos, casuais, ou de compromisso, os amantes, Hilda, que lhe escalavam o corpo feliz de Rita Hayworth, ao tempo em que ainda se faziam, nos dourados anos 50, astros e estrelas -do rádio ao cinema; da revista “O Cruzeiro” às demoiselles acinturadas de “Chuvisco”. Em que ilha de dição da rádio Nacional pousas, quase longilínea no salto alto, a piteira longa com um cigarro insolente na ponta?
Em 1950 estreavas, já poeta de abismos, com “Presságio”. E dali a “Alcoólicas” e “Do Amor”, andaram as estrofes trancadas dentro de um quarto como quem vai morrer -Hilda, Hilda Hilst, meu amor...
Pelo telefone, em 1991, começou esta conversa no escuro e, acho, já falavas desde Marduk, posto que fomos, de planeta em planeta, a navegar a solidão noturna e agora, sim, chegamos à estação em que deveras falas, de Marduk falas, desde Marduk... E se vacilávamos frente ao que na Vida é o Amor Demais, lembravas Marduk, a morada a seguir, depois desta aqui movediça e obsedante... E se tramavas ainda outra vez a morte em vossos interstícios de dama sombria, lembrávamos Marduk, por mais chovesse em Curitiba e o sinistro esplendor das estrelas cadentes povoassem o teu céu de Campinas. O céu que nos protege, lembra, Hilda? Lembra, lembra de novo, o que de coisas nos ameaçavam! A nós, os ambos, mortos de medo.
Buscaste a glória, com avidez de atriz estreante, e já te querias, Hilda, que tolice!, a vender aos borbotões nas livrarias. Eu me lembro, Hilda, eu me lembro que invejavas Regine Laforgue e os seus milhões de livros de mão em mão e achavas impossível que não catassem, aos trilhões, tuas pérolas aos porcos... Ah, Hilda , não sabias o quanto eras secreta.
De “Qadós” à “Obscena Senhora D”, passando pela areia movediça do inquietante “Com Meus Olhos de Cão”, a tua prosa, a um tempo inventiva e libertária, nos desconstruiu o humano, bêbada de si, no rastro do Amor feito uma cadela no cio. Quem há de tocar, sem que lhe queimem -de vez- a pele das mãos uma folha que seja de vossa floresta de urtigas? Que pretensão a tua; que pretensão cheia de unhas dar-vos inteira à decifração mais vã e menos comedida!
Teu texto - te disse um dia, e hás de lembrar sempre, mesmo em Marduk, ou mesmo que Marduk não exista-, lê-lo, só se previamente de acordo, cúmplices das vilanias de tuas babas e humores, posto que dali não sairemos jamais impunes. Contigo, Hilda, paga-se, antes de tudo, o pecado de estar vivo. Uma prosa acossada, quase psicótica; o mais das vezes arrepiantes divertimentos paranóides. Onde só o que nos salva é a poesia... Quem se habilita?
E Bedecilda, Hilda, que nome, o de sua mãe, meu Deus! Também assistes dela a desagregação moral e, ainda assim, és dura na queda, Hilda, e por mais que a ame, lhe deseja, a rigor, a morte mesmo, a travessia para o Marduk estrelado, já que a morte-em-vida é um exercício que põe em choque regra e realidade, códigos e sonhos, e é dessa matéria a morte-em-vida de sua mãe que está sempre a morrer, como se morrer fosse mais de uma vez, Hilda, Hilda Hilst, meu amor.
Na Casa do Sol, os menininhos saltitavam, Hilda, as soltas batas até o chão, nus por baixo, os sucessivos cigarros de maconha, o licor de cacau, os poemas de Keats, as vespertinas de Lorca, o riso em flor de um bar aberto sobre a paisagem, os inomináveis de Beckett, os cantares de Rosa, Rosácea em flor e, acima de tudo, o múltiplo e rigoroso Pessoa; de Doris Lessing, Hilda, uma flor colhida em Newport; de Virginia Woolf, todos os passos –ainda- às margens do Ouse. E um livro que, pelo telefone, comentamos, várias vezes comentamos, à sombra de Tânatos -“Suicídio - Modo de Usar”. Ler e escrever -teu martírio e gozo; tuas quedas no abismo e tuas epifanias, Hilda, Hilda Hilst, meu amor.
O cavalo de olhos furados, Hilda, os gatos cambaleantes, os setenta e cinco cães que outra vez latem e ganem, uivam e grunhem -de dor ou júbilo-, a zôo orquestração do horror mais manso em que te cercavas, Hilda, rainha dos bichos postos de lado, chutados das lanchonetes, pela água fervente quase queimados vivos. De todos, um cão, ao menos, ainda se lembra de ti, os olhos súplices e as presas gastas.
Três anos. Nem precisava tanto! Novos amigos comuns debandaram a Marduk. Aí onde, decerto, já lhes oferece o café preto e o pão alemão com que costumavas brindar os hóspedes fortuitos de Campinas. Que morada escolheste, Hilda, a partir da leitura da “Carta a El Greco”, do enorme Nikos Kazantzakis? Bem sabes, não a escolheste; foste, isto sim, a escolhida para morar ali, pelo ato escabroso de ler. A Casa do Sol foi o teu refúgio e também a tua condenação. Acataste, com humildade de monja, o convento de si mesma. Um porão de achados.
Hilda, estou com saudade, estou com muita saudade de você.
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Wilson Bueno - escritor, autor, entre outros livros, da novela "Meu Tio Roseno, a Cavalo" (Editora 34) e de "A Copista de Kafka" (Planeta).

Um comentário:

N. Rodrigues disse...

E um livro que, pelo telefone, comentamos, várias vezes comentamos, à sombra de Tânatos -“Suicídio - Modo de Usar”. Ler e escrever -teu martírio e gozo; tuas quedas no abismo e tuas epifanias, Hilda, Hilda Hilst, meu amor.

Como diria a minha avó: "é um desbunde de tanto amor."

Que linda carta. Quanta dor. Quanta saudade. Uma alma afogada em nostalgia... das boas. Nostalgia da Hilda.