domingo, 12 de junho de 2011

Parto, de partir:

Lélia Almeida.

Quando o menino nasceu, minhas mãos se encheram de afazeres, meu coração de preocupações e meus dias de pequenas e inusitadas alegrias. Vê-lo crescer, ali, ao pé da árvore hesitante que eu também era me deu, finalmente, o sentimento de pertença que eu buscara durante toda a minha vida. Pois não foi como filha, nem como esposa, nem como profissional que eu achei o meu lugar no mundo. Foi a maternidade que me fez encontrar a minha turma, o meu lugar, junto às outras mães. Estes seres anônimos e sempre tão parecidos e previsíveis, e que repetem uma coreografia inerente, trazida como herança na mais recôndita genética e que é sempre simples e compreensível em qualquer lugar do mundo. Alimentar o menino, vesti-lo, aconchegá-lo depois do tombo, limpar-lhe o joelho destampado, tênis novo, furado, chulé, pano quente no ouvido com otite no meio da noite, caderno com orelha e letra incompreensível, “- Come, por favor, pára de falar e come.”
Descortinamos as verdades do mundo e nos tornamos um pouco filósofas, médicas, mediadoras, físicas, na troca comum da descoberta dos dias. Estamos na praia de noite, caminhando e ele diz agarrado na minha mão,
“-Ué, e não é que apagaram a luz do céu e ficou tudo escuro!” Choro copiosamente no dia em que o Ayrton Senna morreu, ele acompanha os dias do velório, a espera para o enterro e pergunta solene, “- Por que tem pessoas que quando morrem são enterradas embaixo da terra e outras que vão pro céu?”
Catchup, batata frita, gelatina de cereja, ovo molinho e bife milalêis, bicicleta, gato, Cavaleiros do Zoodíaco, Príncipe da Pérsia, Lego, The Strokes, Chaves, Friends, pipoca, moleton com capuz, tatoo, piercing, reunião dançante com cachorro-quente, cinema e cortar o cabelo, unhas pretas, imundas, mais chulé, outro gato, ódio à matemática, Allstar cor-de-rosa, chupão no pescoço, “-Não fica triste mãe, nem sempre dá certo, é assim mesmo, a vida tem vida própria”, ele me explica. Baseado, porres, contas absurdas de celular, noites sem aparecer e sem avisar, namoros relâmpagos, outros nem tanto, a primeira viagem de excursão da escola, circo, competição de natação, baterista numa banda chamada Blue Velvet.
Aprendi tudo o que sei com ele, tudo o que é realmente importante, que são as coisas da vida pequena. Arroz branco com gema de ovo, beijo de borboleta, beijo de esquimó, mais noites em claro com otite, febrão. A porta abre, depois de dias de ausência, vou dormir aliviada, ele está vivo. Cabelo montanha, olho remelento, meia furada. Barba, bigode, uma força e uma fome descomunais.
Os dias cheios, as mãos fartas de tantas tarefas e eu cheia de ciência, de sabedoria, exibida, competindo com todas as mães do mundo que contam as histórias simples dos seus filhos como as maiores façanhas e conquistas da humanidade. Ele aprendeu a amarrar os sapatos, a abotoar a camisa, a ler, a escrever, a dirigir.
E um dia, você está ali, as mãos no mesmo movimento nervoso de sempre, dobrando as camisas, arrumando a mala, fechando a mala, vendo ele partir, ele ir embora. É o segundo parto. E você não chora, porque você sempre disse que era isso mesmo o que ele tinha que fazer. Procurar a sua turma, seu rumo, seu norte. O menino parte. Abana de longe, no embarque do avião que vai levá-lo para outra cidade, no outro extremo do país. Você cambaleia enquanto volta pra casa. E quando entra em casa, abre a porta e o silêncio da ausência dele enovela os seus dias e desassossega as suas noites. Você percebe então uma coisa muito simples, que as suas mãos, de uma hora para outra, ficaram vazias. De uma noite para uma manhã, as suas mãos tão cheias, ficaram vazias. E sem utilidade.
Não sei o que fazer com as minhas mãos que eram tão atarefadas, tenho medo de emburrecer sem as perguntas dele que moviam as minhas repostas. Não durmo. Ouço-o chegando no meio da noite e descubro que estava sonhando. Ouço uma música no meio do Shopping e meu coração paralisa numa saudade difícil de contar.Não tenho vontade de levantar da cama pela manhã.
Mas descobri que continuo pertencendo à mesma confraria. A de outras mães, agora. Como esta senhora que senta ao meu lado no metrô e me mostra uma foto do filho que foi para uma missão no Haiti. Ela me conta, “- Não tenho vontade de nada, não tenho vontade de voltar pra casa, sabe, e o pior é que nem posso contar isso pra ninguém, porque pensam que a gente é doida, grudenta, possessiva. Mas não é nada disto, ela me diz. É o tal do ninho vazio, eu tenho saudade do menino, e da minha vida com ele.” E ela aperta o meu braço entendendo que sei do que ela está falando, porque soluçamos abraçadas no embalo do metrô. Não estamos sós. Continuamos a repetir a coreografia que nos irmana. As duas vamos chegar a casa em poucos minutos, uma casa imensa agora, o silêncio será absoluto, forjado nestas noites mal dormidas e sem fim e vamos cumprir a sina, a de reinventar a vida possível no ninho vazio.
Quando nos despedimos no metrô ela disse, meu médico disse que as mulheres na menopausa devem fazer alguma coisa com as mãos, eu acho que vou voltar a bordar e a tecer agora que tenho tempo. Faça isso também, ela me aconselhou. Faça algo com as mãos.
Mãos vazias, eu pensei. Mãos vazias podem ser úteis para quem gosta de escrever, eu pensei antes de dormir. E agradeci a Deus pela minha nova amiga.