Leite
de rosas, por Lélia Almeida.
Eu tinha onze anos quando minha mãe me
deu um frasco de leite de rosas e me disse, use
sempre antes de dormir para limpar a pele, agora você é uma mocinha. Uso
até hoje e o cheiro do leite de rosas me lembra de verdades essenciais todas as
noites, depois de tê-las esquecido durante o dia.
Gosto de um livro da Victoria Sau, uma
feminista espanhola da velha guarda, maravilhosa, que se chama El vacío de la maternidade. Ela afirma
que a maternidade não existe, no sentido de que não existe enquanto valor
social, já que somos mães para os filhos dos homens, na história do
patriarcado. Tudo o que enaltece as mulheres, um pretenso amor ou instinto
materno, o acolhimento, a capacidade de cuidar, é o mesmo que nos perde já que
somos descartadas nas horas das tomada das decisões legítimas. As mães sírias
que o digam.
Para Victoria Sau, que retoma o
pensamento de Riane Eisler de quem gosto muito, em algum momento da história do
mundo as mulheres, que viviam numa relação de valorização, não de poder, ao
lado de suas mães, numa linhagem matrilinear, foram sequestradas pelos homens
que desta maneira, através do sequestro e do rapto enfraqueceram sua referência
mais importante, a mãe, a avó, a filha, as amigas, as outras mulheres.
Enfraquecer este vínculo é colocar a perder a irmandade, a cumplicidade e a
comunidade de mulheres. E elas passam, então, a ter filhos para os homens.
Portanto, diz Sau, a maternidade não existe, se as mulheres, como mães, servem
aos homens, vivem para eles e não sabem quem são e o que querem, a maternidade
não existe. E as mulheres se contentariam em parir os filhos numa espécie de
inconsciência calando a boca com um pênis ou com um filho, ela radicaliza. Na
verdade a autora faz alusão ao grande mal que o mito do amor romântico – que direciona
a existência feminina para o casamento ou para o amor - e o mito do amor
materno – que faz dos filhos a centralidade de suas existências - podem fazer à
vida das mulheres, imbecilizando-as a elas e sua prole, num miasma de amor cujo
objetivo da vida se situa na rede dos afetos pura e simplesmente e propõe que
as mulheres usem esta potencia em outras frentes, que cuidem do mundo, oras, ou
que não cuidem, e que cresçam e se desenvolvam de outras maneiras também, para
além do que se espera delas.
Adoro estas velhas feministas, radicais,
furiosas, que preconizam o que há de mais importante no feminismo, um
sentimento de pertinência. De pertencer. À casa da minha mãe, da minha avó, das
minhas amigas, das minhas filhas, da minha irmã, a filha da minha mãe. Da mesma
maneira que as linhagens e associações masculinas são inquebrantáveis,
deveríamos voltar a casa materna, para lembrar do essencial.
Mas o vínculo entre as mães e as filha
foi rompido, diz Victoria Sau, e pagamos um preço absurdo por este rompimento.
Na história do mundo, só resta a história de Deméter e Perséfone para lembrar
que as mães e as filhas estiveram juntas em algum momento. Deméter sabe que
perdeu sua Core, mesmo que ela volte ao seu encontro em alguns momentos do ano,
Deméter chora em Elêusis a perda da sua menina e os mistérios eleusinos são a
celebração da nossa dor, da nossa perda deste vínculo que nos constitui de uma
maneira definitiva.
Nos perdemos da casa materna quando não
ouvimos a nossa própria voz, quando nos portamos como ventríloquos das vontades
alheias, quando não sabemos o que queremos, quando nos submetemos, quando
negligenciamos quem somos nas nossas relações, quando deixamos de ser
importantes, e quando a voz dos nossos pais, maridos, irmãos, maridos,
namorados ou chefes soam mais altas do que as nossas. Então submergimos no
silêncio, um silêncio que só pode ser resgatado, agora e sempre, através da
reflexão sobre como nos portamos no mundo em relação às outras mulheres.
Quando escrevo sobre as mulheres estou
tentando voltar pra casa, quando leio sobre elas, estou procurando o caminho de
volta, quando procuro imagens de mulheres e investigo como foram pintadas,
desenhadas, fotografadas, estou voltando pra casa. Sem pressa, que agora sei
que o caminho é longo. O caminho de volta, de quando a gente se perdeu é como o
caminho de uma peregrinação, na travessia vamos lembrando do que esquecemos,
vamos ao encontro da nossa alma. No final talvez encontremos um refúgio, um
lugar para se estar em paz, com um espelho, uma bacia com leite de rosas, uma
toalha de linho cru, e onde possamos enfim lembrar deste outro mundo que
esquecemos todos os dias.
Brasília, 02 de junho de 2012.